13 agosto 2019

Inquietude


Com os olhos ainda inchados, ela toma intermináveis minutos observando sua imagem no espelho. Os olhos escuros e felinos, os cabelos bagunçados, o corpo curvilíneo e imperfeito e as pequenas olheiras que denunciam mais uma noite inquieta.
Ela está cansada de se perguntar o que está acontecendo, qual é o problema. Está cansada de buscar causas e efeitos. Está cansada de imaginar sentimentos alheios, de criar roteiros em sua cabeça, da vida nesse mundo paralelo dentro de seus devaneios. Quer sair desse mundo de fantasias e pular para o real, mas nunca sabe como, não consegue encontrar um caminho que não seja, no fim, um beco sem saída.
Caminhando a passos preguiçosos pela cozinha, seus pensamentos não acompanham a calmaria da manhã, pelo contrário, flamejam mais depressa do que a chama acesa do fogão. Ela adora pensar que se encontrou em si mesma, mas começa a acreditar que talvez essa não seja a verdade. Talvez seja apenas um reflexo de sua imensa vontade e esforço em fazê-lo e no fim ela não passe de uma fraude. Inalando fundo o cheiro do café que começava a tomar conta do cômodo, ela assentiu para a voz em sua cabeça, "é isso, eu sou uma fraude".
Ela era. Não tinha mais dúvidas.
Mostrava-se sempre tão certa de tudo, quando no fundo não tinha certeza de nada. Em suas autorreflexões gostava de dizer que o problema era sempre o outro, mas não, o problema era ela. Era sempre com ela. Afinal, o outro certamente estava colocando tranquilamente a cabeça no travesseiro e tendo uma noite tranquila de sono, enquanto ela já havia decorado os limites de cada canto da cama. E após esse pensamento, tomando um longo gole de café, ela constatou que realmente não conseguia deixar de criar roteiros e hipóteses sobre tudo. Talvez ela tivesse mais mente de escritora do que imaginasse – estava sempre criando uma história, para cada situação, e às vezes até mais de uma.
Várias hipóteses, várias variáveis, várias histórias, desfechos distintos.
Bufando para o alto, por um momento ela quis poder ouvir o pensamento dos outros. Ao menos não viveria nessa ansiedade que não passa nunca, ainda que aparentemente ela não esteja realmente à espera de algo. Mas no instante seguinte soube que seria apenas mais uma coisa com a qual ela simplesmente não saberia lidar.
Ao sair pela porta, o vento frio fazendo-a inconsciente abraçar seu próprio corpo, enquanto observava o céu lentamente colorir-se de rosa e laranja, dando boas-vindas a mais um dia que chegava, soube que essa era a sua sina. Soube que, por mais que isso a deixasse inquieta e insegura, e que por mais que ela talvez não tivesse se encontrado com ela mesma, sabia quem ela era, como era, e sabia que assim ela não conseguia deixar de ser.


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texto de julho de 2018

12 agosto 2019

Viva


foto: weheartit

Qual a real distância entre a segurança e o perigo?
Um passo, um salto, um grito? Uma palavra, um gesto, um grifo...
É muito difícil dizer o quanto dessa distância eu quero percorrer. Não sei para onde ir, nem mesmo o que fazer... Me encontro parada, em pé no meio de uma encruzilhada, e os caminhos são como ímãs que me atraem igualmente para ambos os lados, me impedindo de mexer, não me deixando escolher.
É como se existissem duas consciências antagônicas dentro do meu ser.
Eu me atraio pelo proibido, a adrenalina correndo por minhas veias é como alimento para um vício, vislumbrar qualquer possibilidade de transgredir as regras faz meu corpo todo vibrar em antecipação. Meus olhos brilham, meu corpo queima, e eu me sinto viva pela sensação.
O sagitário com ascendente em capricórnio me faz querer tudo ao mesmo tempo: o fogo e a terra fria. Eu me sinto a própria personificação da contradição.
O vislumbre do seguro, do cômodo, do aconchegante aquece o meu coração. Tudo parece tão simples e certo, tão fácil e descomplicado, que uma sensação de paz acalma minha respiração, diminui a palpitação. Ao fechar os olhos me sinto feliz e completa, como ter um sonho realizado, mas se penso demais, se olho melhor, tudo começa a parecer tão... Chato.
Aborreço-me fácil.
Sou essência de indecisão, confusão, injusta, egoísta, passo pela vida como furacão, marcando, fazendo estrago, deixando rastro de destruição, mas dependendo do ponto de vista, também sou porta para transformação, reconstrução.
Renascimento.
No mar revolto do meu pensamento, sou barco à deriva, sem rótulo e sem destino, sem ponto de partida. Transito em qualquer direção, provo de toda sensação, mapeando pessoas, lugares, carinhos, valorizo a razão, mas sempre acabo levada pela emoção, pela pulsão... Pra mim, viver é isso.
Mais do que ver, conhecer, saber, é sentir a imensidão desse horizonte azul-marinho.
Sentar-me na proa e saborear o caminho.

09 agosto 2019

Âncora


foto: weheartit

O simples ato de te olhar faz minha cabeça pesar.
Eu me sinto tonta, embriagada, exasperada, enquanto sou bombardeada com lembranças de algo que nunca aconteceu.
Eu viajo os sete mares apenas naquele instante, eu flutuo pelas sete dimensões, vejo estrelas brilhantes, me perco da realidade material, ela se distancia do meu alcance até totalmente me escapar.
Nada mais é tangível ali, nada além da reação extrema do meu corpo a você.
Você me tira o foco, eu não consigo me concentrar. Fico presa num mundo de fantasias, minha nuca arrepia pelo simples imaginar...
Seus olhos esverdeados adoram me enxergar, você pensa que eu não noto, mas é impossível não reparar, esteja onde eu estiver você sempre consegue me achar. Alimenta minha euforia mesmo sem saber, mas será mesmo que não é capaz de perceber?
Meu consciente não tem voz quando se trata de você, meu inconsciente vem à tona, meus instintos tomam conta, tudo que eu sinto é química, a urgência me domina e é tão difícil controlar...
Das marcas que deixamos pelo mundo, o seu corpo é o que eu quero entalhar: grifar, sublinhar, rabiscar. Imagino tua pele quente e a quero explorar, com a ponta dos meus dedos o seu corpo passear, conhecer cada canto, cada imperfeição, gravar um mapa de você, com riqueza de detalhes, só para não correr o risco de nada se apagar. Quero te colorir de infinito com o meu pulsar, fazer o sangue nas suas veias borbulhar, deixar rastro de gelo, deixar o meu desejo te desenhar, caminho de fogo daqueles que não se consegue apagar, entrar sob sua pele de uma forma que você não consiga tirar, não adianta lavar. Quero te fazer salivar.
Quero te memorizar, em cada sensação, em cada reação, em cada respiração.
Você me olha de novo, e seu sorriso torto faz meu coração palpitar, minha boca arfar, sem ar. Sinto-me sufocar, afogar, queimar, tudo assim de uma vez só, espelhando o caos que se instalou em mim e que não ainda não encontrei formas de catalogar, que não sou capaz de interpretar, nem superar.
A Terra está me chamando, mas eu não quero voltar... Não tenho âncora para me segurar.
Preciso voar.

07 maio 2019

Hoje lembrei do teu amor


foto: pinterest

Hoje lembrei de ti. De nós.
De tudo o que vivemos, dos momentos que dividimos, das aventuras nas quais nos metemos.
Lembrei de quando a gente foi acampar, que discutimos a noite e eu amanheci ainda brava com você e saí caminhar sozinha enquanto você ainda dormia, só para te encontrar desesperado quando voltei, pensando que tinha acontecido alguma coisa comigo porque não conseguiu me encontrar em lugar nenhum quando acordou – olha o tipo de coisa que você pensava. Você me abraçou como se tua vida dependesse daquilo, e toda a minha chateação desapareceu.
Lembrei de quando te acompanhei no casamento do teu tio apenas no nosso segundo dia de namoro, de como morri de vergonha e de como você me tranquilizou – e de como ficou com ciúmes porque achou que o fotógrafo da festa estava me dando atenção demais. Lembrei também de quando te levei em casa pela primeira vez, onde a família toda estava reunida para os 50 anos do meu pai, de como você estava tão nervoso, mas conquistou todo mundo tão rápido com aquele sorriso que eu amava tanto.
Lembrei da minha formatura, de quando você me viu pronta e seus olhos brilharam como se eu fosse a coisa mais linda que você já tinha visto. Você sempre foi um livro aberto, era transparente, teu sentimento irradiava, era pura energia, quase palpável. É uma experiência que eu chego a duvidar se vou viver alguma outra vez da vida, ser amada com tanta intensidade, um amor incondicional, sincero e transcendente, sem receios.
Lembrei das tantas vezes que criaram intrigas entre a gente, que tentaram nos separar, e ainda hoje não consigo entender o motivo, só me leva a crer que a felicidade alheia realmente deve incomodar demais. Mas mesmo assim, a gente resistiu a tudo de ruim que jogaram na nossa direção.
Lembrei do vermelho das tuas bochechas, da pintinha do lado do teu nariz, das batidas do teu coração que eu ouvia quando me envolvia no teu abraço quente. Lembrei da tua voz me dizendo que me amava, da tua risada que contagiava e iluminava meus dias, por piores que fossem. Lembrei das brigas e das reconciliações e de tantas outras coisas que guardo só para mim.
Hoje lembrei de tudo. Lembrei de como a vida dividiu nossas jornadas, e de como ela nunca me deu o tempo que eu precisava para encontrar o meu caminho de volta para você.
E agora, com um gosto agridoce na boca enquanto derramo aqui toda a saudade que sinto, me dou conta de que eu nunca mais vou ser capaz de amar inteira... Porque um pedaço meu se foi com você.

17 abril 2019

Prisioneira

foto: weheartit
Havia um monstro dentro de mim
Uma força desconhecida de vontades escusas
Desejos ardentes, verdades ácidas
A luta para segurá-la era contínua
Consumia minhas forças, sugava minhas energias
Às vezes ela conseguia fugir
Totalmente
Do meu controle
Acorrenta-la novamente era trabalho árduo
Mas não pior do que lidar com as consequências
Destruição
E cicatrizes
Que assombravam seu rastro
Eles me diziam
Que eu precisava mantê-la trancada
Presa e amarrada
Porque ela era perigosa
Pois não podia ser domada
Foi quando eu perguntei
“E qual é o problema?”
Ninguém quer arreio e cabresto
O que vocês têm a temer?
Mas me dei conta que eu já o fazia
A mantinha prisioneira porque invejava
Sua liberdade
Tirava-lhe as forças porque queria
O seu espírito
Mas como poderia não tê-lo
Se ela era eu?